sábado, 5 de dezembro de 2009

Historia de um Cão




Luis Guimarães Filho
“Eu tinha um cão. Chamava-se Veludo:Magro, asqueroso, revoltante, imundo,Para dizer numa palavra tudo , foi o mais feio cão que houve no mundo
Recebi-o das mãos dum camarada.Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» - me disse, e ao afagar Veludo,nos olhos seus o pranto borbulhava.
«Trata-o bem. Verás como rasteiro te indicara os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro te console no mundo ermo de amigos.
»Veludo a custo habituou-se à vida que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,febril, convulso, trêmulo, agitado a sua cauda - caminhava errante
A luz da lua - tristemente uivandoToussenel: Figuier e a lista imensa dos modernos zoológicos doutores ,dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
Lembro-me ainda, trouxe-me o correio, cinco meses depois, do meu amigo ,um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo contendo a narração miúda e exata, da travessia.
Dava-me importantes notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:Gabava o steamer que o levou; dizia que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia Mulheres joviais - todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo em nota breve do melhor cursivo recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento me contemplava, e - creia que é verdade,vi, comovido, vi nesse momento ,seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente,estendeu-se a meus pés silencioso,movendo a cauda, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito gozo.Passou-se o tempo. Finalmente um dia vi-me livre d’aquele companheiro;
Para nada Veludo me servia, dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.E respirei! «Graças a Deus! Já posso»Dizia eu «viver neste bom mundo sem ter que dar diariamente um osso a um bicho vil, a um feio cão imundo».
Gosto dos animais, porém prefiro a essa raça baixa e aduladora um alazão inglês, de sela ou tiro, ou uma gata branca sismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia e a negra noite amortalhava tudo sentí que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,Farejou toda a casa satisfeito;e - de cansado - foi rolar dormindo como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável suportar esse hóspede importuno que me seguia como o miserável ladrão,ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim.
Certo, é custoso dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso havia um meio só: era matá-lo
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguia-me. No entanto a fremente borrasca me arrancava dos frios ombros o revolto manto,e a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,c ontra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo - e com furor remamos
Veludo à proa olhava-me choroso como o cordeiro no final momento
,Embora! Era fatal! Era forçoso livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços e arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos lutando contra a morte.
Era pungente.
Voltei à terra - entrei em casa. O vento zunia sempre na amplidão profundo. e pareceu-me ouvir o atroz lamento de Veludo nas ondas moribundo
.Mas ao despir dos ombros meus o manto ,notei - oh grande dor! - haver perdid uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido contra o meu coração constantemente e o conservava no maior recato pois minha mãe me dera essa corrente,e, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo, no eterno abismo que devora tudo; e foi o cão, foi esse cão imundo a causa do meu mal!
Ah, se Veludo duas vidas tivera - duas vidas eu arrancaria àquela besta morta e àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri, - abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, - e docemente deixou cair da boca que espumava a medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? - Ajoelhado junto do cão - estupefato, absorto, palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto”.

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